(Para Julia)
Fomos a Madri em um trem noturno, dez horas de viagem, cabine dupla com leito. Havia um corredor rosa antigo elegante como as suas roupas, um escândalo vintage. A calefação na cabine era de morte e o sacolejo faria você se levantar e fugir para uma pousada estática – se estivéssemos em Paraty.
Fomos a Madri em um trem noturno, dez horas de viagem, cabine dupla com leito. Havia um corredor rosa antigo elegante como as suas roupas, um escândalo vintage. A calefação na cabine era de morte e o sacolejo faria você se levantar e fugir para uma pousada estática – se estivéssemos em Paraty.
Se Lisboa é do céu azul e dos azulejos de todas as cores,
Madri é dos tons de terra, do bege, do marrom, do cinza, mas também do amarelo
ouro dos postes que iluminam à noite as ruas tão cheias de gente. Fala-se mais,
sai-se mais, perambula-se mais aqui. A cidade engole Rio e Lisboa, como o outdoor
gigante do James Rodríguez – eu ia dizer Cristiano Ronaldo, mas o Tico me
corrigiu, acho que não aprendi tão bem com o álbum da Copa – na esquina da Puerta del Sol.
O primeiro museu foi o Tyssen, para rever o Hopper, para
rever o Lucian Freud e maravilhar-me com tantos outros. O segundo foi o Prado,
museu quase de estimação. Só que dessa vez meu roteiro começou diferente: fui
direto à sala 58 ver aquilo que Adan/Adán via todos os dias, chapado de
remédios e haxixe. Ah, Juliette, vontade de gritar ao Ben Lerner e a você que
eu entendo Adan/Adán, que também seria capaz de ir diariamente ao Prado só para ver a Deposição da cruz, de Rogier van der Weyden. É um acontecimento.
Ainda sob efeito do quadro, saco
feliz o celular do bolso para cumprir a promessa que fiz a você. Uma japonesa sorri satisfeita depois de me advertir que
não é permitido tirar fotos, mesmo sem flash. Agradeço, sorrio de volto e, quando ela e seu grupo saem da sala, faço o registro.
Como você viu, os personagens parecem saltar do quadro, mas não é só isso. O azul da túnica de Maria é
hipnotizante e talvez seja a primeira coisa que chama atenção ao entrarmos na
sala. Apenas Maria, que possuía uma relação com o divino, é digna de usar
essa cor, conta a professora espanhola de história da arte postada na frente da tela. Em outra aula, com outro grupo, a guia explica, diante do famoso tríptico
de Bosch (ou El Bosco, como dizem os espanhóis), que a tela central representa
O Jardim das delícias, no qual se pode ver toda sorte de pecado. “O pecado era a única relação entre paraíso e inferno à época”, continua a moça.
De alguma
forma estranha começo a pensar que talvez o azul (túnica de Maria) seja a cor
do pecado, fazendo a ponte entre o terreno e o divino. E como é que ficam esses
pensamentos diante daquele artigo que sublinha a inexistência da cor azul nos textos
antigos?
No Paseo del Prado, vejo o pássaro mais elegante e surpreendente:
cabeça e bico negros, barriga branca com um trecho verde-bandeira e uma cauda azul
Klein. Persegui o bicho até a bateria do celular acabar, lembrando tanto de
você, com seus vestidos geométricos esvoaçantes de mesma paleta, cruzando
aqueles corredores azul-mofo, que nunca mereceram tamanha fluidez.
No Reina Sofía, sobra cérebro apenas para o Guernica, que a bem da verdade merecia
mesmo um mês de observação. Ainda fui capaz de contemplar o Klein, homenagem ao
pássaro, e de me deter diante de uma tela quadrada, amarela, em que sem podiam
ler em fonte negra os diversos nomes do amarelo: anteojera, antiguo, azufre,
barba de cabrón, cera, botón de oro, de cúrcuma.
De volta a Lisboa, retornei ao Museu da Mãe D’água,
antigo reservatório de água da cidade, prédio lindíssimo, tão único que é capaz
de eclipsar as fotografias do Wim Wenders expostas ao redor e sobre o espelho d’água.
São registros de Portugal, seu aqueduto, os telhados da capital, fachadas
gastas, piscinas cheias e abandonadas. Em uma das fotos, pode-se ver no
concreto de um edifício as marcas do vizinho que já não existe e adivinhar,
pelas cores das paredes, que cômodos havia ali. Uma sala laranja, um banheiro
rosa, uma cozinha azul? Enquanto isso a água segue correndo pela cachoeira
artificial, as paredes geladas de pedra, a luz que entra pelas janelas
laterais, estamos todos submersos em imagens, água, eco.
Pelas ruas de Alfama – e do Bairro Alto e da Madragoa – sigo
fotografando, mentalmente e com o celular, janelas, portas, paredes e becos
azuis e amarelos.
Se a combinação de azul e amarelo é o verde, acho que já
temos uma cor para o nosso encontro, a mesma das suas roupas de yoga.
PS: Ler o Ben Lerner com sotaque português a fazer
menções ao Regresso ao futuro é um
tanto estranho.
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